sexta-feira, 12 de abril de 2013

Como se nunca estivesse existido

Parei o carro na entrada da casa. O sol estava a pino e o suor escorria por minha nuca. Minha cabeça girava e doía estupidamente. Encarei meu reflexo no retrovisor: os óculos escuros modelo aviador cobriam boa parte do meu rosto, mas não o suficiente. Uma pele fina e roxa brilhava abaixo de meu olho esquerdo. Demoraria um ou dois dias para que conseguisse abrir este olho novamente.
A porta estava trancada. Tive certa dificuldade em encontrar as chaves no bolso da calça. 

Arranquei os óculos e fiquei parado no portal enquanto meu olho direito se acostumava com a falta de iluminação. Minha cabeça doía e rodava ainda mais. Peguei dois comprimidos de paracetamol na segunda gaveta do armário da cozinha e uma garrafa pela metade de conhaque na prateleira de cima. Enquanto tomava os comprimidos com o líquido marrom notei que a mesa não estava posta. Sophia não havia tomado café.

Sorvi mais um bom gole de conhaque antes de entrar no quarto. A garrafa por pouco não soltou de minha mão quando avistei a cama vazia. Ela não estava em casa. Mais um gole e um olhar de relance sobre o criado mudo vazio ao lado da cama. Ela sempre deixava o livro que estava lendo pousado ali. Me virei bruscamente para encontrar uma estante com apenas um troféu de futsal e um cinzeiro. Os livros dela não estavam ali.

Meu coração palpitou e eu levei a garrafa a boca. A imagem do rosto dela banhado em lágrimas me encarando na noite passada me acertou junto com sua voz estilhaçada: Se você sair por essa porta eu vou embora! Vai ser como se eu nunca estivesse existido!  Minha mão encontrou espaço entre o compensado da estante a parede mal pintada. Tudo veio ao chão. Um chute. Depois outro. Mais um. Uma lágrima. Senti meus dedos dos pés doloridos e dei mais um chute. A estante estava despedaçada e minha garganta seca. Mais um longe gole.

Sentei na cama encarando o guarda-roupas. Temi que ele também estivesse vazio. Foi preciso mais dois goles para a coragem surgir e eu abrir as portas de madeira. Poucas peças masculinas existiam no interior do armário. Soquei com toda minha força a porta. Esfolei os nós dos dedos e gargalhei. Mais um gole e me joguei na cama.

Os lençóis exalavam um cheiro de amaciante e não o perfume doce de Sophia. Ela havia trocado a roupa de cama. Agarrei o travesseiro e inspirei o mais fundo possível. Nenhum vestígio de seu cheiro. Como se eu nunca estivesse existido. Nunca existido. Nunca. Levantei-me de forma brutal e a tontura me acertou como uma marreta. Esperei se amenizar e retirei todos os lençóis do armário. Nenhum tinha o cheiro dela.

A garrafa pendia vazia em minha mão enquanto caminhava até o banheiro. A pia estava vazia. Todos os seus cremes e maquiagens tinham desaparecidos. Nem os fios de cabelos que ela deixava no ralo após o banho estavam lá. Joguei a garrafa contra a parede de azulejos azuis e deixei o banheiro. Como se eu nunca estivesse existido. Nunca. Nunca. Nunca. Nunca existido. Soquei a parede e olhei apreensivo para a bancada. Um chip de celular partido ao meio. Chorei. Chorei como uma criança. Ela havia me deixado. Nunca existido. Meu corpo dominado pelo álcool escorregou até tocar o chão.

A consciência escorria de mim vagarosamente. Fechei os olhos para reabri-los imediatamente. Uma voz doce ecoava ao longe: Daniel? Está em casa?

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